Se você é incapaz de sentir um pingo que seja de alegria porque há
profissionais da medicina que estão vindo de outros países para atender
seus irmãos brasileiros desgraçados em lugares pobres e longínquos aonde
nem um só médico quis ir... Sinceramente, você é uma vergonha para o
meu país.
Se você não sabe o significado da palavra solidariedade em sua vida mesquinha, egocêntrica, racista, fascista e xenofóbica;
se generosidade significa pra você apenas aquela esmolazinha
“cala-consciência” (consciência?) de depois da missa dos domingos a que
você, religiosamente (sem trocadilho), comparece numa tentativa
certamente inútil de expiar os pecados que você imagina não ter;
se trabalho voluntário pra você não passa de algo distante que em um dia
qualquer alguém de quem você não lembra mais te falou;
se o mais próximo que você sentiu da dor de estômago da fome alheia foi
uma expressão de “pena” frente à foto de algum africano esquálido
postada na internet ou na sua revista semanal ou televisão onde você
talvez tenha muito aprendido a ser o que você, enfim, se transformou;
se não o incomoda a desassistência secular da saúde dos brasileiros seus
irmãos esquecidos pelo tempo, pela vida, e por você — enquanto gente
(gente?) e cidadão eleitor que vota na melhor das hipóteses fiel a seu
preconceito ideológico que alguém um dia lhe pôs e você nunca chegou
sequer a transformar em conceito, o que seria ruim, mas ao menos não
seria tão ignorante quanto ser pre(conceito), ou pior, por interesse
meramente pessoal, ou em troca de alguma vantagem, inclusive financeira,
direta ou indireta, ou todas as (ou algumas das) alternativas juntas;
se você jamais se perguntou do porquê de o Brasil verdadeiro ter passado fome, seca e doenças por tantos séculos;
se você é incapaz de sentir um pingo que seja de alegria porque há
profissionais da medicina que estão vindo de outros países para atender
seus irmãos brasileiros desgraçados em lugares pobres e longínquos aonde
nem um só médico quis ir, colega seu ou não;
se você é tão hipócrita que agora repentinamente lhe bateu uma
preocupação com o que você acredita seja a escravidão que a “terrível”
Cuba ― aquela de um dos melhores IDHs do mundo ― está impingindo aos
médicos cubanos que estão aportando por aqui para ir tratar de seus
irmãos brasileiros secularmente esquecidos e onde ninguém, nem um só
médico quis ir, de qualquer outro país, inclusive, claro, do seu;
se essa inusitada “preocupação” com a “terrível” Cuba se estabelece e
permanece mesmo quando você toma conhecimento de que a contratação dos
médicos cubanos está sendo intermediada por uma entidade que tem mais de
um século de existência e é respeitada no mundo inteiro, a OPAS –
Organização Pan-Americana de Saúde, e de que os médicos cubanos são
reconhecidamente os mais humanitários do planeta terra, presentes em
inúmeros países, desenvolvidos ou não, em dezenas de missões na área da
saúde e da educação;
se você não consegue entender que não “revalidar” os diplomas dos
médicos estrangeiros é condição inafastável, uma vez que o “revalida”
confere ao profissional, por exemplo, o direito de atuar em qualquer
lugar do país, o que inviabilizaria completamente o objetivo do programa
governamental àqueles que estão sendo contratados para trabalhar nesses
rincões do Brasil aonde colega seu, ou parente seu, ou alguém que você
conheça e envergue um jaleco branco engomado e limpo não quis ir, porque
se eles obtiverem o bendito “revalida” poderão ir trabalhar nos bons
lugares onde você, ou seu parente, ou seu colega, ou alguém que você
conheça trabalha, disputando, agora sim, com você, mas que existem
outras formas também válidas de avaliar a competência desses médicos
estrangeiros para atuar nos locais para onde você jamais irá (ou iria) e
atender aos seus irmãos brasileiros como e onde você jamais fará (ou
faria);
se você não percebe que deve ao seu país, e portanto a todos os
brasileiros que pagam impostos, o seu curso gratuito numa universidade
pública, e que o mínimo que você devia fazer, se não quer colaborar,
seria não atrapalhar;
se a sua consciência ao menos não se aquieta ao constatar que há muitos
lugares neste país, com ou sem condição hospitalar satisfatória, em que
seus colegas médicos jamais iriam trabalhar, mas que outros,
estrangeiros, farão isto por você, e isto é bom;
se você não consegue admirar os médicos cubanos que estão chegando ao
seu país para fazer o que você não fez, não faria e não fará, e que eles
estão felizes, dispostos e entusiasmados em servir aos seus irmãos
brasileiros e ao Brasil, porque foram forjados na prática comunitária de
servir ao próximo, porque atuam em programa de medicina que já atendeu e
atende a mais de cem países, com baixíssimo (antes que você diga o
contrário, no seu argumento tão sórdido quanto pueril e hipócrita),
praticamente insignificante índice de deserção, apesar de serem,
prazeirosamente — como lindamente o dizem —, médicos cubanos, nascidos
num país pobre, com seus erros e acertos, asfixiado por uma política
comercial e social cruel, e orgulhosamente socialista;
se você não se dá conta da alegria que é ver um país, o Brasil, de
tantas desigualdades sociais, pela primeira vez em sua história tê-las
reduzidas drástica e permanentemente;
se você desconhece que este fenômeno (contratação de médicos
estrangeiros para fins semelhantes) acontece nos mais diversos países,
inclusive nos seus adorados Estados Unidos e Inglaterra (vai, confessa
que eu sei que você se pudesse morreria, soubesse que nasceria novamente
num dos dois);
se você não se sente feliz em saber que aquelas crianças e velhos do
Brasil esquecido durante tanto tempo estão sendo olhados agora com os
olhos com que necessitavam sê-los, os olhos da urgência, da emergência,
que só o amor, a solidariedade e a generosidade conseguem ver;
se você não sabe o que fazem por esse mundo os médicos cubanos, sua
obra, sua humanidade, seu destemor, seu espírito coletivo, seu desapego
às nossas vaidades, seu reconhecimento dos mais importantes organismos
internacionais, a exemplo da UNESCO;
se você não consegue compreender que as pessoas não podem esperar e que um médico na comunidade é simplesmente fundamental;
se você prefere que os médicos cubanos não venham porque eles atenderão
sem o “revalida”, mesmo sabendo porque não o serão, e que ainda assim
serão avaliados por entidades de escol do Brasil;
se você sabe que das cerca de quinze mil vagas abertas e direcionadas
exclusivamente aos médicos brasileiros, para apenas mil delas houve
interesse de seus compatriotas, e que há centenas de municípios onde nem
um só médico, não apenas brasileiro, mas não-cubano, se candidatou a ir
trabalhar, mesmo pagando dez mil reais e ajuda de custo (moradia,
etc.), e ainda assim você é contra o programa, não raro fervorosamente;
se você está “sinceramente” muito preocupado porque “acredita”,
firmemente, que os cubanos estão sendo escravizados por Fidel,
coitados;
se estranhamente você não ficou tão indignado quando os médicos
estrangeiros de outros países por aqui aportaram, mas teve um surto
histérico (chilique!) mal-educado, racista, fascista e xenofóbico quando
na vez dos cubanos;
se na sua ignorância sórdida você não consegue nem perceber que eles não
irão concorrer com você nem tirar o seu lugar e a sua vaga no
“mercado”…
Se você mesmo assim ainda torce contra… ainda quer vê-los longe daqui…
ainda prefere que tudo fique neste país como sempre esteve…
Se você apoia as vaias dos médicos brasileiros (meu Deus!) dirigidas aos médicos cubanos em Fortaleza…
Sinceramente, você é uma vergonha para o meu país. E felizmente, não temos nada a ver um com o outro.
*André Falcão é advogado