sábado, 19 de janeiro de 2019

Estudante pobre tem apenas 0,16 de chance de estar entre os melhores do ENEM


Somente um pequeno grupo de 293 alunos brasileiros que estudaram em condições extremamente desfavoráveis conseguiu ter nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2017 equivalente à da elite dos colégios do País. Apesar de pobres e em escolas com infraestrutura precária, esses jovens contrariam as estatísticas que mostram que o desempenho educacional está quase sempre relacionado às condições em que o aluno vive e estuda. Pelos dados, o aluno pobre tem só 0,16% de chances de estar entre as melhores notas do Enem.

O peso desses fatores socioeconômicos é de até 85% no resultado de quem presta o Enem - principal porta de entrada no ensino superior público e privado do País. Levantamento feito pelo cientista de dados e mestre em Economia do Setor Público pela Universidade de Brasília (UnB) Leonardo Sales cruzou dados de 1,3 milhão de candidatos cujas notas estavam disponíveis. Naquela edição, cerca de 4,6 milhões de alunos prestaram o teste.

Para fazer o cálculo, contou-se um "ponto" para cada condição geralmente relacionada a um baixo desempenho para a nota. São elas: cursar o ensino médio em colégio municipal ou estadual, não ter carro, computador, acesso à internet nem telefone fixo, ter frequentado escola com pouca infraestrutura (como baixo número de funcionários ou poucos equipamentos multimídia) e renda familiar inferior a R$ 312 por pessoa (equivalente a um terço do salário mínimo naquele ano).

No total, 176,9 mil candidatos do Enem daquele ano somaram dez pontos - estavam associados a todas essas condições adversas de uma só vez. Apenas 293 tiveram pontuação suficiente para entrar no grupo dos alunos mais favorecidos - o extremo oposto, sem preencher nenhum dos dez requisitos de vulnerabilidade socioeconômica. Significa que o aluno pobre tem apenas uma chance em 600 (0,16%) de ficar entre as 5% melhores notas. E, desse total de estudantes no topo, só 0,4% são desse estrato mais pobre.

Para entrar no grupo dos melhores, o desempenho necessário era de 659,5 pontos (de mil possíveis) na média das provas objetivas (Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e da Natureza). Além de 180 questões dessas áreas, o exame cobra uma redação. Levantamento com notas do Enem anterior mostra tendência semelhante. 

Quem são
Mais da metade desses alunos (154) é do Ceará, cujo ensino público se tornou referência após ter desenvolvido programas voltados para a alfabetização na última década. No ensino médio, a rede cearense é a quarta melhor do País, junto de São Paulo e Rondônia, como mostra o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) 2017 (mais recente), principal indicador federal de qualidade na área. 

Mas, afinal, o que mais une os perfis desses alunos? De origem pobre, esses jovens contaram com o esforço dos pais para dedicarem dia e noite aos estudos - às vezes com uma brecha para estágio. Com o objetivo de contornar dificuldades, usaram todo tipo de estratégia: videoaulas na internet, computador emprestado da prima e idas à biblioteca pública para revisar a matéria. Em alguns casos, a condição socioeconômica pode até não pesar na nota, mas atrapalha a escolha do curso desejado.

Sarah Santos, de 19 anos, sempre foi incentivada a estudar pela mãe, que nunca teve chance de fazer faculdade. "Primeiro, eu me esforçava para orgulhar minha mãe. Agora, é para realizar meus sonhos", conta.

A principal meta da jovem era entrar na Universidade Federal do Ceará (UFC). Desse modo, separava cerca de duas horas para estudar por meio de apostilas preparatórias para o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) oferecidas pela prefeitura de Fortaleza. "Como estudava o dia todo num curso técnico, era bem desgastante. Mas a gente tirava o tempinho que tinha para revisar."

A escola estadual onde fez o ensino médio, segundo ela, ajudou. Ela traçou um plano para melhorar os resultados dos alunos no Enem e organizava aulas aos fins de semana para revisar o conteúdo. Deu certo: entre os alunos de piores condições socioeconômicas, Sarah está entre os 293 que tiveram nota próxima às dos colégios de elite.

Entrou em Engenharia Ambiental na UFC, mas fez só um semestre, porque a carga horária integral a impedia de trabalhar e ela não se identificou tanto com o curso. Agora, faz Biomedicina com bolsa em uma faculdade privada. "Trabalho de dia como caixa de supermercado e estudo à noite. Estou me descobrindo nesse curso."

Alisson Lopes, de 19 anos, também não ficou com a primeira opção. Após se dividir entre o ensino médio, o curso profissionalizante e o estágio, o cearense conseguiu 708 pontos na prova federal (de mil possíveis). "Cheguei a ser aprovado em Medicina em outros Estados, mas não pude levar adiante por questões financeiras", conta ele, que vive com os pais e três irmãos. 

O adolescente trocou de curso, mas não saiu da área de saúde: é aluno de Odontologia da UFC. Ele atribui o bom resultado não só à grande carga de estudos diários, mas à vivência em sala de aula, com bons professores. "A rotina maluca do período integral também ajudou pela questão da resistência física e preparo psicológico, importantes para dois dias de prova", diz. 

Desafio
Quando prestou o Enem, a única renda da casa de Débora Ferreira, de 18 anos, era o salário do pai, auxiliar de serviços gerais. Dividida com a família, mal chegava a R$ 300 para cada um. Sempre aluna da rede pública, ela é de Ubajara (CE), cidade a 300 quilômetros de Fortaleza e com 32 mil habitantes. "Apesar de ter condições estruturais não muito boas, meu colégio tinha professores excelentes", diz. 

"Acordava às 6 horas para ir à escola, onde passava a manhã. Quando chegava em casa, só tinha tempo para almoçar e tomar banho antes de voltar a estudar. Depois eu saía novamente às 17 horas pra fazer o cursinho e só voltava às 23h30", conta ela, que chegou a fazer 860 pontos em Redação. "Não esperava uma nota tão alta", diz ela, hoje estudante de Enfermagem de uma universidade pública local.

Para Sabrina Gomes, de 19 anos, além de uma realização pessoal, o curso superior será uma oportunidade de ajudar os pais a melhorar de vida. De Itamarandiba (MG), a 465 quilômetros de Belo Horizonte, sua rotina na adolescência envolveu dias longe de casa. Para estudar para o exame, frequentava a biblioteca municipal e pegava emprestado o computador da prima para assistir a aulas online. A falta de internet em casa, diz, até ajudou, de alguma forma. "Acabaria dispersa nas redes sociais."

Agora aluna de Odontologia de uma faculdade privada com bolsa federal de BH, mora na casa de conhecidos e recebe uma ajuda dos pais para se bancar. "A gente vai tentando contornar a situação" diz.

FONTE: Diário de Pernambuco